Ao longo dos últimos 100 anos, Jackson do Pandeiro teve a história contada das capas dos LP’s até as biografias, passando por documentários e entrevistas com ele ou com amigos, parentes e admiradores. No entanto, as narrativas e os personagens cantados pelo Rei do Ritmo também apresentam traços pouco conhecidos sobre a trajetória do artista.
Maria Pororoca, Josefa Triburtino e Carminha Vilar fizeram parte da vida de Jackson. Estão entre personagens citados em canções compostas ou interpretadas por Jackson a mãe dele, gerentes de pensões e boates em que o artista tocou, bairros importantes na carreira dele, além de figuras da cultura popular, como o “cego da feira” ou o nordestino que migra para o Sul em busca de oportunidades.
Pesquisas realizadas por acadêmicos da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Universidade Estadual da Paraíba (UEPB) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp) apontam que as obras cantadas por José Gomes Filho contribuíram para moldar a Música Popular Brasileira contemporânea. Já a biografia escrita por Fernando Moura e Antônio Vicente retrata o reflexo da vida do artista nas composições, enquanto o livro de Inaldo Soares cataloga a obra do rei do ritmo.
“Zé Jack”, como era chamado pelos amigos de infância, deu os primeiros passos na música ainda cedo, influenciado pela mãe, a coquista Flora Maria da Conceição, conhecida como Flora Mourão.
Jackson acompanhava a mãe nas rodas de coco, seguindo a batida do coco e do ganzá. A cantoria de Flora também era fonte de renda para a casa, formada pelo oleiro José Gomes e outras duas crianças, o pai e os irmãos de Jackson.
Vicente e Moura relatam que, aos 10 anos de idade, José Filho já assumiu o posto de zabumbeiro nos cocos tirados pela mãe. A experiência durou cerca de um ano, mas marcou o garoto. Os autores descrevem a família como uma “dinastia do ritmo”.
Em 1972, em entrevista ao programa MPB Especial, ao falar sobre a apresentação da música Sebastiana, um dos grandes sucessos do artista, Jackson lembrou dos momentos vividos com Flora, como indicado na tese de doutorado de Claudio Campos. “Aí foi quando eu me lembrei do tempo que eu via minha mãe batendo coco, também, né?… do tropé”, disse o artista, se referindo às rodas de coco.
Homenagens à Flora foram identificadas por Roberta Barbosa e Ivonildes Fonseca na música “Xexéu de Bananeira”, nome de um pássaro, em que Jackson canta “Ó, menina bonita, formosa, brejeira/ Que só sai de casa pra fazer a feira/ Arrastando a saia, levanta poeira/ Meu xexéu de bananeira”.
Referências à matriarca também podem ser vistas na interpretação de Jackson no samba “Verdadeiro Amor”, composto por José Bezerra. Na música, ele declara “Verdadeiro amor que se tem na vida só existe um, é o da nossa mãe querida”.
Antônio Vicente e Fernando Moura contam no livro “Jackson do Pandeiro: o rei do ritmo” que a conhecida “Cantiga do Sapo”, fruto de uma parceria do paraibano com Buco do Pandeiro, em 1970, foi inspirada nas lembranças de Jackson das brincadeiras nos rios Mamanguape, Madaú e na “Lagoa do Paó”, todos na terra natal do artista, Alagoa Grande.
Segundo a análise dos biógrafos, foi o forte barulho feito pelos animais que inspirou o popular refrão “Tião?/Oi!/ Foste?/ Fui!/ Compraste?/ Comprei!/ Pagaste?/ Paguei!/ Me diz quanto foi?/ Foi quinhentos réis”.
Alô, Campina Grande!
Com a morte de José Gomes, por volta de 1930, a família se mudou de Alagoa Grande para Campina Grande. Na cidade, a carreira de Jackson enquanto músico profissional começa a se solidificar, ao passo que surgem novos personagens nas conhecidas composições.
Na Feira Central do município, ele conviveu com repentistas, emboladores e artesãos. Moura e Vicente narram que, nesse local, Zé Jack conheceu e chegou a acompanhar Chico Bernardo, um homem cego, que ganhava a vida com cordeis, viola e reco-reco.
“Lamento Cego”, composição de 1959 de Jackson do Pandeiro e Nivaldo Lima, interpretada pelo rei do ritmo, apresenta as dores do “cego da feira”, personagem que pode ter sido inspirado nas experiências do artista e retrata a realidade das feiras, segundo Claudio Campos.
Ao longo da canção, o cantor faz as vezes do narrador e do próprio cego. “Irmão, que está me escutando/ Preste bem atenção/ Já vi um cego contando/ Sua história num rojão/ […] Que sofrimento profundo/ Querer ver e não poder!/ […] Por isso nós tamo aqui/ Eu e minha viola”.
Forró em Campina
Em 1939, Jack deixou o trabalho como ajudante de padeiro e começou a trabalhar com música, nas boates situadas na região da Feira Central de Campina Grande conhecida, à época, como “Mandchúria”.
Moura e Vicente relatam que no mesmo ano, Carminha Vilar, que já conhecia José Filho desde quando mantinha uma churrascaria, assumiu o Cassino Eldorado, um cabaré famoso então, que contava com uma orquestra da qual o pandeirista fez parte até 1944.
Para Cláudio Campos, nesse local, pelo contato com outros músicos, se intensificaram as experiências de José Gomes Filho com diferentes ritmos, especialmente os ligados à dança, como choro, samba, jazz e a rumba. Ali, também foram construídos os traços performáticos do artista.
Na canção “Forró em Campina”, lançada em 1971, Jackson faz uma saudosa referência aos bairros da cidade e a três gerentes de boate que conheceu na Mandchúria.
“Me lembro de Maria Pororoca/ De Josefa Triburtino e de Carminha Vilar/ Bodocongó, Alto Branco e Zé Pinheiro/ Aprendi a tocar pandeiro nos forrós de lá./Ah, meus 18 anos”, diz a letra.
Conforme Vicente e Moura, Josefa Triburtino foi gerente da Pensão Moderna, situada ao lado da churrascaria de Carminha. Maria Pororoca também dirigia um estabelecimento que era frequentado por Jackson, embora ele não tenha tocado lá.
Na tese do doutorado em música, Cláudio Campos explica que até mesmo a interpretação de Jackson dessa canção destaca o caráter pessoal da letra, já que, ao contrário do que acontece em muitas das outras, o artista não utiliza o coro de vozes para as repetições, mas as faz ele mesmo.
O tom saudoso de Jackson em relação aos tempos vividos em Campina Grande também fica claro em “Saudade de um amigo”. Segundo Fernando Moura, a letra se refere a um grande parceiro de música do rei do ritmo, Abdias.
“Jamais esquecerei um grande amigo/ Que há muito viveu comigo/ Companheiro de jornada/ Nas épocas passadas/ Chorava eu na sanfona ele no pinho/ Cantava igual a um passarinho/ Até alta madrugada/ Depois este amigo meu morreu/ Até a minha sanfona emudeceu/ Um dia próximo senti minha inspiração/ E eu então fiz este choro que é uma recordação”, diz a letra.
Raízes nordestinas
Depois de sair de Campina Grande, José Gomes Filho seguiu para João Pessoa, e então para Recife, onde começou a ganhar visibilidade nacional e a partir daí conheceu o Sudeste. Essas mudanças espaço-culturais têm reflexos nas canções do rei do ritmo, como apontado por Manuela Ramos, na dissertação de mestrado em história, que analisou as músicas do rei do ritmo no período de 1953 a 1967.
Composição de Elias Soares e de Jackson, gravada em 1960 no LP “Cantando de Norte a Sul”, o xote “Filomena e Fedegoso” fala sobre o filho de Filomena, que, após quatro meses no Rio de Janeiro, retorna para o Nordeste com um sotaque diferente. “Agora tá falando carioca/ Gerimum ele diz que é ‘abrobra’/ macaxeira ele diz que é aipim”.
No rojão “Vou buscar Maria”, composto por Severino Ramos e gravado em 1959, o personagem principal narra que ganhou dinheiro no Rio de Janeiro e, agora, irá visitar a mãe e buscar a esposa, que estão no Sertão do Nordeste.
Cultura popular
De acordo com Fernando Moura, entre as pessoas cantadas por Jackson estão Getúlio Vargas, na canção “Ele disse”; Pelé, em “Rei Pelé”; Dominguinhos e Gilberto Gil em “Xodó no Forró”; e Lampião em “História de Lampião”.
Ao contar as histórias de figuras como Cabo Tenório, Sebastiana, Rosa, Filomena e Fedegoso, as músicas de Jackson do Pandeiro despertaram a curiosidade do povo brasileiro e seguem embalando forrós em Campina Grande, Limoeiro e Caruaru.
No entanto, Moura explicou que a maioria desses personagens inusitados não existiu de verdade, embora esteja marcada na memória popular. “É tudo ficção da cabeça de Rosil [Cavalcanti], de Antônio Barros, de Bezerra da Silva, de Edgar Ferreira”, pontuou.
Porém, a veracidade das histórias cantadas “tem pouca diferença”, pois a dança diferente de Sebastiana e a mistura de “chiclete com banana” seguem fazendo o rei do ritmo levar o Brasil inteiro a cantar e xaxar com os tantos Zé’s na Paraíba.
FONTE: G1